Urias Sérgio

Vivo da esperança de ver o soerguimento da ética e da razão e isso dá-me forças de continuar lutando

Textos

A VISITA DO BISPO
A VISITA DO BISPO


Em 1974 quando morava em Itaituba, no sul do Pará e ocupava o  cargo de administrador da F.A.G. – Fundação de Assistência ao Garimpeiro – coordenada pelo Ministério do Trabalho, em razão da grande movimentação de garimpeiros pelas “corrutelas” (vilas) dos garimpos – no auge da produtividade dos barrancos (locais de onde se extraiam o ouro aluvionar) – a presença maciça de prostitutas nessas vilas acabava por acirrar ânimos e eram comuns as brigas e tiroteios em toda a região, com mortes freqüentes, por qualquer motivo torpe. A presença dos homens na floresta por longo período acabava por embrutece-los e como andavam constantemente armados, os crimes sucediam-se em proporções alarmantes.
Fui chamado à presença do capitão Heliot – coordenador da Fundação e que no momento, apresentava traços de visível preocupação, olhando de pé, pela janela, a chuva que se formava ao longe, naquela quinta-feira.
- Sérgio, disse-me: Temos um probleminha pela frente - voltou-se e assentou em sua cadeira, apontando-me uma.
Mais um só (pensei com meus botões) e quando deixaríamos de tê-los (os problemas) em Itaituba? O capitão era muito formal em suas colocações mas sempre amenizava ao máximo suas opiniões, talvez para nos poupar um pouco, em razão dos inúmeros problemas de nosso dia-a-dia.
E, usando sua expressão favorita disse:
- É caboclo!  A coisa “ta” cada vez mais difícil. Temos mais uma novidadezinha e  confesso, não tenho a menor idéia de como vamos conseguir contornar essa encrenca que vem aí.
- Em que posso ajuda-lo capitão? Perguntei, sem me preocupar com o que seria, já que nada mais me surpreendia.
- “Ta” vindo aí amanhã, um visitante para conhecer a cidade e gostaria que você o recebesse e fizesse “ a honra da casa” – já que terei que viajar a Brasília e estou lhe passando essa incumbência... muito a contra-gosto, é claro! Ironizou.
- Só isso capitão? Não tem problema, disse sem dar muita importância ao fato. Quem é que vem dessa vez? Algum figurão de Brasília ou o General (fazendo alusão aos  vários políticos que apareciam de vez em quando e ao presidente da Fundação) que, de vez em quando dizia estar vindo a Itaituba mas que raramente aparecia.
- O bispo da prelazia de Santarém, soltou, de forma suave, como que se recusando a acreditar em suas próprias palavras.
- O quê, capitão? O senhor está brincando! O Bispo? Ele enlouqueceu? O que é que ele vem fazer aqui em Itaituba e o que é que temos com isso? Certamente vem visitar a paróquia e os padres que cuidem dele, soltei, meio atônito.
- Não Sérgio, ele chega amanhã, sexta-feira, reza uma missa na igreja daqui e sábado quer conhecer duas corrutelas dos garimpos. Me ligou dizendo-se preocupado com a quantidade de mortes que vem ocorrendo nos garimpos e ele quer ver em que é que a Igreja pode ajudar para reduzir essa mortandade.
- Diga a ele capitão para mandar construir uma igreja em cada corrutela e enviar um padre e uns cinco seguranças armados de metralhadoras para ajudá-lo a levar os garimpeiros para a igreja e manter a lei e a ordem, disse-lhe irônico. É a maneira mais fácil de acabar com a matança. Ah! E diga pra ele que vai  arrumar “um monte” de “filhas de Maria” nas boates, ironizei. Quem sabe, assim, as mortes diminuem.
- Só me faltava essa! Continuei. Um Bispo no garimpo. Só me faltava essa! – repeti, resmungando,  assentando novamente.
- Chefe, diga que você está brincando comigo, diga! Isso é brincadeira, não é?
- Gostaria que fosse, mas como não é, escute-me por favor, que o assunto é muito sério, falou agora em tom formal:
- O Bispo chega na sexta-feira pela manhã, no vôo da Varig. Você deve buscá-lo no aeroporto e leva-lo à casa paroquial. Na sexta-feira é a única coisa que precisa fazer. Acerte com o  comandante Peres a viagem para duas corrutelas no sábado. Vão pela manhã, no primeiro horário e voltam à tarde.
- Qual a sua sugestão? Em quais corrutelas você pretende levá-lo? Perguntou-me. E ficou me olhando.
- Se não houver mesmo jeito de evitar essa viagem, o ideal seria levá-lo ao Creporí, pela manhã e ao Pacu, à tarde. São as corrutelas mais tranqüilas e só tem o problema dos Pihuns no Pacu, que como você sabe, são difíceis de agüentar.
- Ótimo Sérgio então está resolvido. Muito obrigado, cuide de tudo, sim!
- Espera aí capitão, a coisa não é tão simples. Vou precisar de mais um avião, com pelo menos uns cinco homens, para garantir a sua segurança. No avião do comandante Peres vai o Bispo, eu e o Manoel Maranhão. Não cabe mais ninguém, já que teremos que colocar as poltronas na aeronave. No outro avião, podemos retirar as poltronas, para carregar mais peso e dá pra levar pelo menos cinco guardas.
- De jeito nenhum, Sérgio, o Bispo foi enfático em afirmar não querer nem segurança nem armas de fogo nessas visitas. É uma visita de paz, para levar a Igreja até os garimpos e ele não aceita ajuda nesse sentido.
- Santa Maria - resmunguei, então me deixe enviar o pessoal a paisana, na véspera? Assim quando chegarmos, já estarão lá, em condições de  nos  ajudar, caso for preciso.
- Sérgio, já conversei com o Delegado e o que tinha de pessoal disponível ele enviou para o Cuiú-Cuiú para resolver aquela “encrenca” lá, disse, referindo-se a morte de duas prostitutas e um garimpeiro recentemente. Você vai ter que se virar... sozinho. Sozinho, entendeu?

O Bispo, de uns sessenta anos, meio gordinho mas aparentando estar bem fisicamente, chegou no vôo no horário marcado, acompanhado de um padre – seu ajudante. Muito educado, durante todo o trajeto para a Igreja foi perguntando sobre o que estava acontecendo nos garimpos, qual o objetivo de nossa missão em Itaituba e acabamos terminando a conversa quase duas horas depois, no salão paroquial. Aproveitei para dizer-lhe minha opinião sincera sobre o que pretendia e ousei aconselha-lo a ficar em Itaituba e retornar a Santarém sem realizar o seu intento. Muito polido ouvia-me atentamente mas, podia jurar, fazia-o apenas por educação, já que demonstrava, em seus gestos e modos, ter uma opinião já formada sobre a situação.
Foi jogar gasolina na fervura. Quanto mais eu lhe dizia dos riscos que corria, mais crescia seu interesse pela viagem. Demonstrava um grande controle psicológico e muita segurança ao falar, dizendo já ter passado por outras fortes experiências na Itália e em outros países onde havia passado e que eu não deveria me preocupar com ele, já que sabia muito bem o que estava fazendo.

A tempestade que estava se formando na sexta não havia caído. Havia deixado para cair exatamente no início daquele sábado.
Acordei as cinco horas, com uma tempestade sem precedentes, caindo sobre Itaituba. Havíamos marcado para sair às seis horas. Apressei-me no banho e me dirigi ao refeitório para o café da manhã. Manoel Maranhão já estava me esperando na porta do refeitório. Ele não dormia nunca. Não sei de onde tirava tanta disposição. Estava sempre preparado.
- Você viu o comandante Peres, Manoel? Sabe se ele já se levantou?
- Claro que já. Foi ver se estava tudo bem com o avião e mandou dizer-lhe que se essa chuva continuar desse jeito não vai ter viagem.
- Ok! – Se ele achar que não dá para viajar, melhor. Assim não teremos que servir de babá para esse Bispo no meio do mato.
Até parecia que o Bispo tinha essa viagem já acertada com São Pedro. As seis horas da manhã a chuva parou embora o tempo continuasse muito fechado, o que dava para prever que nossa viagem, no pequeno monomotor, não seria nada agradável, já que teríamos que viajar baixo, no meio das nuvens.
Embarcamos às seis horas e trinta minutos, o Comandante Peres e eu na frente e o Bispo, o padre seu ajudante e Manoel Maranhão atrás, meio espremidos no pequeno Bonanza.
A viagem de Itaituba à corrutela do Creporí demorou 40 minutos com o avião balançando muito, a ponto do padre começar a passar mal e botar para fora o seu café da manhã. Balançava tanto que os óculos do Bispo em certo momento caiu de seu rosto.
Ao sobrevoar a corrutela do  Crepori, com o tempo ainda fechado, começamos a identificar pontos de luz na pista. O comandante Peres então virou para o Bispo e lhe disse: O pessoal aí em baixo está comemorando a sua chegada, olhe  quanta gente na pista.
- O que é isso comandante, perguntou o Bispo se referindo aos pontos de luz e rolos de fumaça. Fogos de artifício?
- Não Sr. Bispo, aqui não tem foguetes não. Isso é bala mesmo. Estão atirando, comemorando a sua chegada.
Pousamos na pista de terra molhada, cheia de buracos, com o pequeno avião jogando de lado, parando entretanto sem maiores conseqüências.
O padre estava totalmente pálido, com a batina suja de seu próprio vômito e o Bispo, ainda que com as mãos trêmulas, desceu do avião com a cabeça erguida e um sorriso amarelo nos lábios. Na pista, uma grande quantidade de garimpeiros e prostitutas, essas o mais discretamente trajadas possível, formavam o comitê de recepção do Bispo.
Fomos em direção ao armazém da F.A.G. e faltando uns 20 metros para chegar ao nosso destino, mais tiros e uma debandada geral. Manoel Maranhão, sacando de sua arma que trouxera escondida, correu em direção ao armazém enquanto eu procurava dar proteção ao Bispo, cobrindo-o com meu corpo.
Ao chegar, entramos com todo o cuidado, tentando entender o que havia ocorrido, procurando o encarregado do armazém, mas sem conseguir encontra-lo. Em um cômodo, no lado esquerdo do armazém, um corpo, em um ataúde, aguardava nosso vôo para levá-lo para sua última morada, em Itaituba. Havia morrido na noite passada vítima de tiros em uma briga na boate e servia de cenário a um momento de extrema tensão em razão dos últimos acontecimentos.
Daí a instantes, chegou Manoel Maranhão com o chefe do posto, com seis galinhas mortas nas mãos. Estava na parte de trás do posto, matando galinhas a tiros, para fazer uma galinhada para o Bispo.

Meia hora depois, sem sequer ter conhecido a comunidade, alegando problemas de saúde do padre que o acompanhava, retornamos com o Bispo para Itaituba, deixando o defunto para trás a esperar o próximo vôo, já que ele não tinha mais nenhuma pressa.
O Bispo ao chegar a Itaituba agradeceu nossa atenção e permaneceu no salão paroquial aguardando o vôo de retorno para Santarém, mas sem sequer falar na ida programada ao garimpo do Pacu.

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Urias Sérgio
Enviado por Urias Sérgio em 27/02/2009


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